A retórica, e a prática, pró-armamentista de Jair Bolsonaro transforma as polícias do Brasil em máquinas mortíferas. O 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública nesta quinta-feira (15), aponta que, em 2020, 6.416 pessoas foram mortas pelas mãos de agentes das polícias Civil e Militar, de folga ou em serviço – e 78,9% delas eram negras.
“As mortes decorrentes de intervenção policial registradas ocorreram, majoritariamente, em serviço e com participação de policiais militares. Estes foram os autores de 76% das mortes”, afirma o Anuário.
Embora o crescimento tenha sido baixo (1%) na comparação com 2019, trata-se do maior número de letalidade policial registrado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública desde que os dados passaram a ser coletados, em 2007. Em 14 anos, o crescimento nas mortes chega a 190%.
“Não deixa de chamar a atenção o crescimento das mortes por intervenções policiais em um ano marcado pela pandemia, pela reduzida circulação de pessoas, pela redução expressiva de todos os crimes contra o patrimônio e pela queda expressiva nas mortes por intervenções policiais no Rio de Janeiro”, afirmam os pesquisadores Samira Bueno, David Marques e Dennis Pacheco.
O Rio de Janeiro passou de 1.814 vítimas, em 2019, para 1.245, no ano passado. A determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender operações policiais durante a pandemia foi crucial. Os dados mostram que a queda no registro de vítimas coincide exatamente com a decisão do STF, publicada em 5 de junho.
Diretora executiva do fórum e uma das responsáveis pela elaboração do Anuário, Samira Bueno disse ao portal Uol que essa letalidade policial recorde decorre de uma escalada da violência na sociedade brasileira. O apoio de Bolsonaro a ações policiais violentas, analisou, é um sintoma desse quadro, ao mesmo tempo que o alimenta.
“É evidente que isso serve como estímulo (para os policiais matarem). E me parece que essa politização da polícia e essa excessiva militarização da política estimulam esse aumento”, afirmou a pesquisadora.
“A grande mensagem é: assim como a gente não pode acusar que toda morte por intervenção policial é ilegítima, a gente também está longe de poder afirmar que todas essas mortes estão legítimas. E tem muita execução que está disfarçada de excludente de ilicitude”, criticou Samira, tocando em um ponto politicamente caro a Bolsonaro.
A promessa de liberar geral o “bandido bom é bandido morto” com que ele seduz os policiais é tão estratégica que na última live do ano passado, em 31 de dezembro, ele prometeu que defenderia com unhas e dentes a aprovação do projeto de lei sobre o excludente de ilicitude em 2021. Basicamente, a proposta consiste em retirar a culpabilidade de policiais por mortes ou danos gerados por eles durante o serviço, e vem sendo barganhado por Bolsonaro desde a campanha de 2018.
Negros são as maiores vítimas da violência
No outro lado da moeda, o número de policiais assassinados no ano passado cresceu 12,7% e chegou a 194. O recorte étnico também transparece: 62,7% deles eram negros. Para Samira, além do racismo institucional presente nas corporações policiais, os índices são mais uma demonstração do racismo estrutural e da desigualdade racial no país.
“É impossível não falarmos de racismo estrutural e desigualdade racial quando olhamos os dados de violência no Brasil. É a reprodução da máquina de moer gente que é a nossa sociedade”, apontou. “Estamos falando também de um grupo que ocupa as piores posições em todos os indicadores socioeconômicos: renda, habitação precária, etc. Esse é o legado de uma sociedade escravocrata por mais de 300 anos.”
Ao El País, David Marques, coordenador de projetos da entidade, chamou a atenção para a piora generalizada nos dados referentes à segurança pública e para os desníveis entre as regiões do país, afetadas pela deterioração socioeconômica do país. “Infelizmente não há o que se comemorar. O anuário tem a ingrata missão de trazer notícias ruins”, lamentou.
Segundo a publicação, o número de mortes violentas intencionais em 2020 cresceu 4% em comparação com o ano anterior. Das 50.033 pessoas assassinadas no país no ano passado, 78% morreram com ferimentos provocados por armas de fogo. A maioria das vítimas era homens (91,3%), negros (76,2%) e jovens (54,3%).
David ressaltou que homicídios são um fenômeno com múltiplas causas no país, mas apontou um fator decisivo: “Essa flexibilização no acesso a armas em curso desde 2019, junto à fragilização dos mecanismos de controle e rastreamento de armas, cria um cenário explosivo do ponto de vista dos homicídios”, argumentou. “Diversos estudos mostram essa associação grande entre mais armas e homicídios.”
Em seu mandato, Bolsonaro tem assinado portarias e decretos para flexibilizar o acesso a armamentos e solapar o controle do Estado, desfigurando o Estatuto do Desarmamento, o conjunto de leis de 2003 responsável por salvar mais de 160 mil vidas. Algumas medidas foram vetadas ou restringidas depois pelo Supremo Tribunal Federal, e outras ainda aguardam julgamento. Enquanto as batalhas se sucedem na Corte, explode o número de armas em circulação no país.
Segundo os dados do Sinarm, sistema da Polícia Federal que cadastra posse, transferência e comercialização de armas de fogo, houve 186.071 novos registros em 2020 – a maioria, de cidadãos privados. O crescimento é de 97,1% em um ano.
Também mais que dobrou (108%) a autorização de importações de armas de fogo de cano longo, categoria que inclui carabinas, espingardas e fuzis. Ainda houve alta de 29,6% nos registros de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs. Tudo estimulado por Bolsonaro, o senhor das armas.
Curiosamente, neste ano, o Anuário fez um mapeamento das polícias, aplicando um questionário. O Brasil tem hoje mais de 406 mil PMs, 55 mil bombeiros e 93 mil policiais civis. São ainda 12 mil peritos técnicos e 96 mil policiais penais. Apenas 10,4% dos entrevistados afirmaram ser favoráveis à posse e porte ilimitados de armas para toda a população. Enquanto 74% pregam o uso civil, mas com diferentes níveis de restrição, 16% defendem a proibição total.
Da Redação